**A versão
em Inglês foi publicada na The Trademark Lawyer Magazine, Edição nº 3, 2019,
alusiva à 141ª Reunião Anual da INTA.
O ano de 2019 reveste-se
de grande importância para a história recente do país pois assinala a passagem
dos vinte anos da reintrodução do sistema da propriedade no país. O advento da
chamada segunda república, motivada pela aprovação da Constituição da República
de 1990, trouxe mudanças profundas na política económica do país, como sejam o
reconhecimento da iniciativa privada, o reconhecimento do direito à propriedade
privada, à liberdade de empresa e de investimento nacional e internacional,
entre outras mudanças.
Assim, após o interregno
verificado logo após a independência do país em 1975, em 1999 foi reinstituído o sistema nacional da
propriedade intelectual, pela aprovação do primeiro Código da Propriedade
Industrial no Moçambique independente, através do Decreto nº 18/99, de 4 de
Maio, e do Regulamento dos Agentes Oficiais de Propriedade Industrial, através
do Decreto nº 19/99, de 4 de Maio.
O Decreto 18/99, de 4 de Maio, também atribuía ao
Departamento Central da Propriedade Industrial (DCPI), adstrito à Direcção
Nacional da Indústria, a competência de administrar provisoriamente os direitos
de propriedade industrial, enquanto se preparava que o Governo criasse um órgão
específico.
À nível regional e internacional o Pais aderiu às
organizações e legislação relevantes[1].
No que diz respeito aos direitos de autor, em 2001 foi aprovada a Lei dos Direitos
de Autor e Direitos Conexos, Lei nº 4/2001, de 27 de Fevereiro, o Regulamento
da Aposição Obrigatória do Selo Nos Fonogramas, Decreto nº 27/2001, de 11 de
Setembro. A nível internacional o país aderiu à Convenção de Berna Para a Protecção
das Obras Literárias e Artísticas.
O que aconteceu nestes vinte
anos em termos de propriedade industrial
Em 2003 o Governo criou o Instituto da Propriedade
Industrial (IPI), através do Decreto nº 50/2003, de 24 de Dezembro, como uma
instituição de âmbito nacional, tutelada pelo Ministro da Indústria e Comércio
e com competência para administrar o sistema da propriedade industrial do país.
A criação do IPI, que entrou em funcionamento em 2004, revelou-se de grande
importância na medida em que impulsionou a implementação e uso do sistema da
propriedade industrial no país, mediante a implantação de procedimentos
administrativos que agilizaram a tramitação dos processos de registo e
concessão dos direitos de propriedade industrial, realização de campanhas
nacionais para a sensibilização dos agentes económicos, e não só, sobre a
importância da propriedade industrial para o desenvolvimento do país, e a
formação dos agentes oficiais de propriedade industrial (AOPIs).
Em 2006 foi
feita a primeira revisão do Código da Propriedade Industrial, passando a
constar do Decreto nº 4/2006, de 12 de Abril.
Em 2007 o Governo aprovou
a Estratégia
da Propriedade Intelectual para o decénio 2008-2018. A estratégia tinha como
objectivo a criação de premissas fundamentais para a valorização da
criatividade, dos resultados da investigação científica e tecnológica e da
capacidade de inovação local, promovendo a utilização do sistema da propriedade
intelectual em prol do desenvolvimento científico, tecnológico, económico e
cultural do país.
Em 2009 foi criada a Inspecção Nacional das
Actividades Económicas (INAE) pelo Decreto nº 46/2009, de 19 de Agosto. Por
forma a clarificar as suas competências e tutela, foi feita uma revisão pelo
Decreto nº 43/2017, de 11 de Agosto. A INAE tem como atribuição a fiscalização
do cumprimento da legislação reguladora do exercício das actividades económicas
e a defesa do consumidor. No que diz respeito à propriedade intelectual em
particular, compete à INAE fiscalizar a legalidade dos direitos de propriedade industrial,
dos direitos de autor e direitos conexos. Neste sentido, a INAE tem tido um
papel crucial no combate à contrafacção, em articulação com o IPI e autoridades
policiais. Nos anos recentes tem feito algumas consideráveis apreensões e
destruição de produtos contrafeitos e a aplicação de multas em casos de
violação flagrante de direitos de propriedade industrial.
Em 2015
foi feita a segunda revisão do Código da Propriedade Industrial, passando a
constar do Decreto nº 47/2015, de 31 de Dezembro. De entre as alterações
de maior impacto podemos destacar, a título exemplificativo, a introdução do
exame substantivo do pedido de registo de patentes (o exame deve ser efectuado
depois de terminado o período de oposição, e deve ser solicitado e pago pelo
requerente. A falta de solicitação do exame substantivo equivale à desistência
do pedido); A explicitação sobre a contagem do prazo para o depósito das
declarações de intenção de uso para os registos internacionais (elas devem ser
submetidas de cinco em cinco anos a contar da data do registo internacional, ou
seja, "a data de inscrição do pedido de registo internacional de marca
pela Secretaria internacional da Organização Mundial da Propriedade intelectual
no seu banco de dados").
Em Setembro de 2017 o Governo aprovou a
resolução que ratifica a adesão da República de Moçambique ao Protocolo de
Banjul sobre Marcas, adoptado em 19 de Novembro de 1993 e os respectivos
regulamentos de implementação. O Protocolo é administrado pela ARIPO. A 7 de
Novembro do mesmo ano a Braz & Associates organizou em Maputo um encontro
sobre o Protocolo de Banjul, que contou com a participação do Director Geral da
ARIPO, Dr. Fernando dos Santos, representantes do IPI, Agentes Oficiais da
Propriedade Industrial (AOPI) e público em geral. O mesmo teve como pano de
fundo a adesão do país ao referido protocolo e tinha como objectivo ilustrar o
impacto deste instrumento legal e, outrossim, disseminar informação sobre como
os agentes moçambicanos podem tirar vantagem do mesmo e inclusive dos demais
protocolos geridos pela ARIPO.
Em 2018 é registada a primeira Indicação Geográfica nacional,
o Cabrito de Tete. Concretamente, o registo data de 29 de Maio de 2018, leva o
número 2/2018 e está em nome da Associação para a Protecção e Promoção do Cabrito
de Tete. De acordo com informação prestada pelo IPI, este registo
deve-se às características exclusivas do cabrito de Tete que podem ser
descritas como "de sabor adocicado, suculento e prolongado, aroma suave,
textura macia, baixo nível calórico e de colesterol", entre outras. Estas
características devem-se as condições climatéricas onde é criado o cabrito,
região onde predomina o clima tropical seco e com pastagem natural, constituída
essencialmente por capim seco, maçanica, malambe[2] e canhú[3]. Tete é uma província da região central de Moçambique, é atravessada pelo rio Zambeze e é na sua parte média onde se
encontra a barragem de
Cahora Bassa, uma das maiores do continente
africano.
Os problemas do momento
Como é sabido, a
pedra angular de qualquer empreitada são os seus recursos humanos. Neste
momento Moçambique possui pouco pessoal qualificado para actuar no ramo da
propriedade industrial. Nota-se no dia a dia a falta ou escassez de formação
profissional tanto dos funcionários afectos ao IPI, como os AOPIs, bem assim de
outros intervenientes no sistema, como sejam os juízes do tribunal
administrativo, o pessoal da INAE e das alfândegas. Em parte, esta situação
pode ficar a dever-se a falta de cursos de direitos de propriedade intelectual
na esmagadora maioria das universidades nacionais e as exiguidade de
oportunidades de formação/ capacitação local de quem actua no ramo. No que diz
respeito aos AOPIs, o país conta actualmente com cerca de 270 AOPIs. No entanto,
a maior parte deles não exerce activamente a função e é notório que muitos
deles não está devidamente equipada para manter e gerir as complexidades e
subtilezas próprias da área da propriedade industrial. Ademais, muitos deles
actuam na área esporadicamente, como complemento das suas outras actividades,
haja visto que não se dedicam exclusivamente a propriedade industrial.
Outro aspecto a
ter em conta é a falta de especialização das firmas que actuam na área. A Braz
& Associates, fundada em 2009, continua a ser a única empresa que se dedica
de forma exclusiva e de forma profissional e continuada à pratica da
propriedade industrial. Por conseguinte, há muitos AOPIs sem oportunidade de
aprimorarem os seus conhecimentos e habilidades na gestão de portefólios de
propriedade industrial, o que os torna vulneráveis e os leva a aceitarem
trabalhar como meros post services de escritórios estrangeiros.
Um dos grandes
problemas que apoquenta os agentes económicos é o fraco e/ ou incipiente
enforcement dos seus direitos de propriedade industrial, o que leva o sector
empresarial a questionar-se qual é a necessidade de registar os seus direitos se
depois não há uma protecção efectiva dos mesmos. As dificuldades que o IPI,
INAE, as Alfândegas demonstram no combate à contrafacção e outras formas de
violação de direitos de propriedade industrial constituem uma barreira e
desencorajamento do uso do sistema da propriedade industrial no país. Com
efeito, a experiência mostra que há uma hesitação e descoordenação sobre quem faz
o quê e quando desde que surge uma denúncia de chegada de produtos
contrafeitos. Essa hesitação e/ ou descoordenação faz com que se percam prazos
processuais e assim as Alfândegas sejam obrigadas a libertar tais produtos.
O outro grande
problema tem a ver com lentidão na resolução dos processos litigiosos. Tanto ao
nível do IPI (recusas provisórias e, sobretudo, oposições) como do Tribunal
Administrativo (recursos contenciosos), os processos arrastam-se por longos
anos o que prejudica as partes interessadas.
Merece
referência a decadência cada vez mais crescente dos serviços prestados pelo
IPI. A experiência mostra que depois do fulgor demonstrado nos anos
subsequentes a sua criação, o desempenho do IPI foi caindo inexoravelmente e
hoje encontra-se enredado na sua própria ineficácia, incongruência de
procedimentos e uma disfuncionalidade medonha que a ninguém aproveita.
O que deve mudar
Pelo que ficou
acima dito, percebe-se que o sistema da propriedade industrial no país
encontra-se numa espécie de purgatório, donde poderá despencar para o
precipício ou dar um salto qualitativo para o tão almejado estado de graça.
Assim, para que esse salto qualitativo se verifique há que apostar seriamente
na formação contínua dos principais actores envolvidos no sistema (funcionários
do IPI, da INAE, das Alfândegas, das autoridades policiais, Juízes (tanto das Secções
comerciais dos tribunais judiciais como os Tribunal Administrativo) e AOPIs. Sobremaneira,
a formação especializada de agentes da INAE, das Alfândegas, das autoridades
policiais e Juízes é crucial para o enforcement dos direitos de propriedade
industrial no país, na medida em que uma maior consciencialização sobre a
importância da PI no desenvolvimento do país será instrumental para a resolução
em tempo útil dos casos de violação dos direitos de propriedade industrial em
geral e da contrafacção em particular.
Por forma a
descongestionar o IPI e resolver o problema de backlog que actualmente se
verifica em relação aos processos contenciosos e exaspera os proprietários de
marcas, sobretudo, deverá, a médio prazo, ser criado um mecanismo alternativo
de resolução de litígios no âmbito da PI, o que ajudaria a combater o referido
backlog, minorando dessa forma os prejuízos dos agentes económicos.
As leis e
sobretudo os procedimentos devem ser alvo de aprimoramento contínuo por forma a
ter em conta os desenvolvimentos mais recentes que ocorrem na área da PI,
incluindo as inovações tecnológicas e as questões mais candentes da área.
O IPI precisa de
adoptar novas práticas na administração do sistema da PI, como sejam a
realização de pesquisas e depósito de pedidos de registo (e outro expediente) de
forma digital (e-filing). Isto irá propiciar o aumento da eficácia e eficiência
na tramitação dos processos, a redução do consumo de papel com benefícios
claros para o meio ambiente, entre outras vantagens.
Urge implementar,
por parte do Governo (Ministério da Agricultura), o registo das variedades de
plantas por forma a salvaguardar os direitos dos criadores e reprodutores de plantas,
haja visto que até ao momento há uma lei e respectivo regulamento de
implementação já aprovados, mas continua por criar a comissão técnica responsável
pela avaliação dos pedidos e posterior registo.
Concomitantemente
com estas acções, o Governo deve revisitar a estratégia da propriedade
intelectual do país por forma a definir para os anos vindouros as linhas
mestras que vão orientar as acções nesta área. O Governo deverá se
consciencializar cada vez mais sobre o importante papel da PI no desenvolvimento
económico do país, os efeitos nefastos da contrafacção tanto para os titulares
dos direitos de propriedade industrial como para a saúde da população
(sobretudos quando estão em causa produtos farmacêuticos/ medicinais e
alimentares) e, bem assim, para a economia do país. Para tanto, espera-se que o
Governo não descure o apetrechamento em recursos humanos e financeiros dos
organismos responsáveis pelo combate a contrafacção a todos os níveis.
[1] Organização Mundial da Propriedade Intelectual, à
Organização Mundial do Comercio, e à Organização Africana Regional da
Propriedade Industrial e ratificou os principais instrumentos legais regionais
e internacionais tais como o Protocolo de Harare de 1982 referente ao registo
de patentes, modelos de utilidade e desenhos industriais, o Acordo de Madrid de
1891 e Respectivo Protocolo de 1989 referentes ao registo internacional de
marcas, o Acordo de Nice de 1957 sobre a classificação internacional de produtos
e servicos no âmbito do registo de marcas, A Convenção de Paris de 1883 sobre a
Protecção da Propriedade Industrial, o Tratado de Cooperação em Matéria de
Patentes (PCT) de 1970 e o respectivo regulamento de execução de 1993 e o
Acordo Sobre os Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados Com o Comércio
(TRIPS).
[2] Fruto do embondeiro, após seca a sua polpa é usada para fazer uma
farinha com um sabor agradável (agridoce) rico em vitaminas e minerais.
[3] Fruto do canhoeiro, caracterizado por ser ovóide ou globoso e com uma polpa
suculenta, doce-acidulada e com uma semente no seu interior.