segunda-feira, 15 de maio de 2017

UMA PATENTE INTRIGANTE

Vez e outra o IPI, ou para sermos mais concretos, os seus examinadores tomam decisões de cariz duvidoso. Umas vezes porque recusam o que não deviam recusar, outras porque admitem a registo pedidos que nunca deveriam lá chegar. Um desses casos é a concessão de uma patente, no mínimo, duvidosa. Trata-se da patente “Processo de Produção de Farinha Na Base de Banana Verde”, que ostenta o número 470/2016A.
O seu pedido de registo foi depositado a 15 de Agosto de 2016 pela Finana – Fábrica de Processamento de Farinha, E.I.. O pedido foi publicado no boletim da propriedade industrial (de ora em diante BPI) nº 91, de 15 de Novembro de 2016.
Quando nos deparamos com a publicação deste pedido conjecturamos para nós mesmos que se tratava de um processo fadado ao fracasso porque, em nosso entender, não reunia os requisitos para o seu registo. A 15 de Janeiro de 2017 foi publicado o BPI nº 93 que, entre outros, trazia os resultados do exame substantivo a que foram submetidos os pedidos publicados no boletim 91.
Inicialmente, ficamos surpresos. A seguir, perplexos. Depois, chocados. Finalmente, incrédulos. Estava escarrapachado nas páginas do boletim que o IPI, ou melhor, os seus examinadores, haviam concedido o título da patente “Processo de Produção de Farinha Na Base de Banana Verde”.
Vejamos, então, a seguir as razões da nossa inquietação e se, de algum modo, têm razão de ser.

O conceito
De acordo com o artigo 1, alínea o), do Código da Propriedade Industrial (daqui em diante CPI)
Uma “patente de invenção é o título concedido por uma autoridade administrativa competente para a protecção de uma invenção”. Ou ainda, nas palavras de Denis Barbosa (2003: pág. 295), "uma patente, na sua formulação clássica, é um direito, conferido pelo Estado, que dá ao seu titular a exclusividade da exploração de uma tecnologia"[1]. O essencial a reter é que a patente é um documento que assegura a protecção de uma invenção. No caso da patente em análise, facilmente se percebe que não se trata de nenhuma invenção pois “farinha de banana verde” é um alimento comum, vulgar e muito conhecido pela população moçambicana, nomeadamente pelas pessoas da província da Manica. É, também, muito conhecido pelo mundo fora. O seu processo de fabricaçã é igualmente sobejamente conhecido.
Uma consulta no motor de busca Google do nome “farinha de banana verde” revela a existência de novecentos e setenta mil (970 000) resultados com informação sobre o assunto. Estes resultados demonstram o grau de popularidade do produto em causa a nível mundial.
Do conceito acima retira-se, igualmente, o entendimento de que com a patente protege-se uma invenção humana que gera uma solução técnica. Ora, o sumário da "invenção" publicado junto com o respectivo pedido de registo da patente não revela nada de invenção e muito menos do problema técnico que o inventor procura resolver. Com efeito, o resumo descreve apenas a existência de boas condições para a produção da banana na Província de Manica e a prevalência de insegurança alimentar durante algumas épocas do ano. Reproduzimos na íntegra o resumo em causa:
"A banana é uma fruta tropical com grande valor de exportação e consumida no mundo por todas as idades e estratos sociais. Ela é rica em potássio, carbohidratos, vitaminas A, B e C, sais minerais, amido resistente que ajudam consideravelmente para promover boa saúde.Na província de Manica, especialmente no distrito de Gondola a banana está disponível durante todo o ano e normalmente é consumido como fruta, algumas famílias cozinham e outras destilam para fazer aguardente e não é processada como farinha, apenas em casos de extrema fome. Sabe-se que no mesmo distrito de Novembro a Fevereiro é considerado tempo de fome.O estudo mostrou que é possível produzir farinha de banana que pode substituir parcialmente a farinha de milho para fazer xima e ou papa para cobrir os meses de insegurança alimentar e reduzir a desnutrição em crianças. No entanto, tem-se notado que a produção de farinha de banana em Manica não existe, sendo assim, o processamento de farinha de banana é uma oportunidade de negócio. Mas parece que os empresários locais não sabem que a banana é matéria-prima que pode ser usada para produzir farinha e outros produtos que podem ser usados para iniciar um novo negócio na indústria de transformação".
Como se pode constatar, nem sequer o tal processo de fabrico da farinha de banana verde é descrito.

Quanto aos requisitos de patenteabilidade
O artigo 32 do CPI prescreve como requisitos da patenteabilidade a novidade, o envolvimento de uma actividade inventiva e a susceptibilidade da aplicação industrial da invenção. Esquadrinhando cada um dos requisitos temos:

Novidade
À luz do artigo 33 do CPI “uma invenção é considerada nova se não houver anterioridade no estado da técnica”. Quer dizer, a invenção é nova se não tiver sido divulgado nada a respeito do quer em Moçambique, quer em qualquer parte do mundo, antes da data do depósito do pedido de registo da patente.
Como já fizemos referência, o motor de busca Google revela a existência de bastante informação publicada sobre a farinha de banana verde. A título de exemplo, reproduzimos informação disponível em http://www.tuasaude.com/farinha-de-banana-verde:
Como fazer a farinha de banana verde
Para fazer a farinha de banana verde em casa basta seguir a receita:
Ingredientes
6 bananas verdes
Modo de preparo
Cortar as bananas em rodelas médias, colocar lado a lado em uma forma e levar ao forno em temperatura baixa, para não queimá-la. Deixar até elas ficarem bem secas, praticamente esfarinhando na mão. Retirar do forno e deixar esfriar na temperatura ambiente. Depois de totalmente frias, colocar as rodelas no liquidificador e bater bem até virar uma farinha. Peneirar até a farinha ficar na espessura desejada e guarde num recipiente bem seco e tampe.
Esta farinha de banana verde caseira dura até 20 dias e não contém glúten.
Como usar
A quantidade de farinha de banana verde que se deve consumir por dia é de até 30 gramas. Você pode adicionar até 2 colheres (de sopa = 20g) num copo de água e tomar em jejum ou adicionar no iogurte, na fruta, na vitamina de frutas ou no feijão, por exemplo.
Ela não tem um sabor forte e também pode ser usada para substituir a farinha de trigo no preparo de bolos, muffins, biscoitos e panquecas.
Resulta líquido do acima exposto que a “invenção” em causa não é nova pois houve anterioridade no estado da técnica. Como explica Carla Barros (2007: pág. 195) "uma das características da novidade exigida é a extraterritorialidade (…). A característica em menção destaca-se importante em vista de sua amplitude, uma vez que suficiente uma publicação em periódicos ou sustentação oral em congressos de notícia técnico-científica, em qualquer país para que se tenha a novidade comprometida, caracterizando-se, destarte, a anterioridade, cabe falar-se, por conseguinte, em princípio da novidade absoluta”[2].

Actividade Inventida
Nos termos do artigo 35 do CPI, “uma invenção é considerada como implicando uma actividade inventiva se, para·o técnico competente na matéria, a invenção não resultar de uma maneira evidente, do estado da técnica”. Ora, no caso sub Júdice facilmente se percebe que não apenas para o técnico competente na matéria, como para qualquer pessoa, a produção de farinha de banana verde é uma questão óbvia, evidente. Ou seja, não envolve nenhuma actividade inventiva.
  
 Aplicação Industrial
Uma invenção é considerada como susceptível de aplicação industrial se o seu objecto puder ser fabricado ou utilizado em qualquer género de indústria”. É o que estabelece o artigo 36 do CPI.
De acordo com Denis Barbosa (2003: págs. 333-4) este requisito envolve dois elementos importantes. O primeiro, que "a indústria seja daquelas cujo resultado importe em mudança dos estados da natureza. Assim, o teste é de se o problema técnico solucionado presuma tornar objetos mais pesados ou mais leves, ácidos ou básicos, estáveis ou explosivos". O segundo elemento, que a aplicação industrial signifique “relativo à mudança nos estados da natureza”, por oposição às simples operações conceituais, aritméticas, artísticas ou, em geral, abstratas"[3].
Como temos vindo a dizer, a "invenção" ora em análise não resulta na alteração na solução de um problema técnico, ou seja, não há alteração do estado da natureza. Pelo contrário, trata-se apenas de um simples e vulgar método de produção de farinha de banana verde. A consolação é a de que, para além do fabrico caseiro, a farinha de banana verde pode ser produzida numa indústria.
Analisada a “invenção” Farinha de Banana Verde sob o crivo dos requisitos acima apresentados, chega-se a conclusão que ela não é uma invenção patenteável à luz do CPI, pelo que os examinadores deveriam acionar o disposto no artigo 72, a), do CPI que prescreve que a falta de um dos requisitos indicados no artigo 32 constitui fundamento de recusa do pedido de registo de patente. Por motivos que não são facilmente entendíveis os examinadores fizeram tábua raza do dispositivo legal acima mencionado.

Ademais, segundo o artigo 39 do CPI, “o direito à patente pertence ao inventor ou aos seus sucessores, por qualquer título”. Sucede que no caso da “patente” que temos vindo a analisar não há indicação de quem seja o inventor, a publicação no boletim é omissa quanto a esse aspecto. A publicação faz menção do requerente, Finana – Fábrica de Processamento de Farinha, E.I., mas estranhamente não indica o inventor, o que não é normal.
Outrossim, uma vez concedida, o titular da patente tem o direito de uso exclusivo da mesma. A exploração comercial da patente pode ser feita a título individual ou pela venda ou cessão a instituições com pujança para o efeito. O titular tem, também, o direito de agir contra terceiros que usem a sua invenção sem o seu consentimento expresso. Aqui chegados, importa fazer o seguinte questionamento: com que legitimidade o provável inventor desta “patente” vai impedir que as pessoas deixem de produzir o que já é feito há centenas de anos no país e em todo o mundo?

Em conclusão, podemos dizer que estamos perante uma péssima decisão do IPI e dos seus examinadores, porque "Processo de Produção de Farinha Na Base de Banana Verde" não é uma patente, de acordo com os critérios previstos no CPI e acima escalpelizados. Por conseguinte, ela pode ser anulada a qualquer momento, como estabelece o artigo 25 do CPI, pois o seu objecto é insusceptível de protecção e, na respectiva concessão, não foram seguidos à risca os procedimentos ou formalidades imprescindíveis para a concessão do direito, nomeadamente as exigências do exame substantivo do pedido de registo para apurar se estavam preenchidos os requisitos de patenteabilidade.




[1] Barbosa, Denis Borges (2003) Uma Introdução À Propriedade Intelectual, Segunda Edição Revista e Atualizada, Lumen Juris, Rio de Janeiro.
[2] Barros, Carla Eugénia Caldas (2007), Manual de Direito da Propriedade Intelectual, Editora Evocati, Aracaju.
[3] Barbosa; Denis Borges (2003). Idem.

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