Vez e outra o IPI, ou para sermos mais concretos, os seus
examinadores tomam decisões de cariz duvidoso. Umas vezes porque recusam o que
não deviam recusar, outras porque admitem a registo pedidos que nunca deveriam
lá chegar. Um desses casos é a concessão de uma patente, no mínimo, duvidosa.
Trata-se da patente “Processo de Produção de Farinha Na Base de Banana Verde”,
que ostenta o número 470/2016A.
O seu pedido de registo foi depositado a 15 de Agosto de
2016 pela Finana – Fábrica de Processamento de Farinha, E.I.. O pedido foi
publicado no boletim da propriedade industrial (de ora em diante BPI) nº 91, de
15 de Novembro de 2016.
Quando nos deparamos com a publicação deste pedido
conjecturamos para nós mesmos que se tratava de um processo fadado ao fracasso
porque, em nosso entender, não reunia os requisitos para o seu registo. A 15 de
Janeiro de 2017 foi publicado o BPI nº 93 que, entre outros, trazia os
resultados do exame substantivo a que foram submetidos os pedidos publicados no
boletim 91.
Inicialmente, ficamos surpresos. A seguir, perplexos.
Depois, chocados. Finalmente, incrédulos. Estava escarrapachado nas páginas do
boletim que o IPI, ou melhor, os seus examinadores, haviam concedido o título
da patente “Processo de Produção de Farinha Na Base de Banana Verde”.
Vejamos, então, a seguir as razões da nossa inquietação e
se, de algum modo, têm razão de ser.
O conceito
De acordo com o artigo 1, alínea o), do Código da Propriedade Industrial
(daqui em diante CPI)
Uma “patente
de invenção é o título concedido por uma autoridade administrativa competente
para a protecção de uma invenção”. Ou ainda, nas palavras de Denis Barbosa
(2003: pág. 295), "uma patente, na sua formulação clássica, é um direito, conferido pelo
Estado, que dá ao seu titular a exclusividade da exploração de uma tecnologia". O essencial a reter é que a patente é um documento que
assegura a protecção de uma invenção. No caso da patente em análise, facilmente
se percebe que não se trata de nenhuma invenção pois “farinha de banana verde”
é um alimento comum, vulgar e muito conhecido pela população moçambicana,
nomeadamente pelas pessoas da província da Manica. É, também, muito conhecido
pelo mundo fora. O seu processo de fabricaçã é igualmente sobejamente
conhecido.
Uma consulta no motor de busca Google do nome “farinha de
banana verde” revela a existência de novecentos e setenta mil (970 000)
resultados com informação sobre o assunto. Estes resultados demonstram o grau
de popularidade do produto em causa a nível mundial.
Do conceito acima retira-se, igualmente, o entendimento
de que com a patente protege-se uma invenção humana que gera uma solução técnica.
Ora, o sumário da "invenção" publicado junto com o respectivo pedido
de registo da patente não revela nada de invenção e muito menos do problema técnico
que o inventor procura resolver. Com efeito, o resumo descreve apenas a existência
de boas condições para a produção da banana na Província de Manica e a prevalência
de insegurança alimentar durante algumas épocas do ano. Reproduzimos na íntegra
o resumo em causa:
"A banana é uma fruta tropical com grande valor de exportação e
consumida no mundo por todas as idades e estratos sociais. Ela é rica em
potássio, carbohidratos, vitaminas A, B e C, sais minerais, amido resistente
que ajudam consideravelmente para promover boa saúde.Na província de Manica,
especialmente no distrito de Gondola a banana está disponível durante todo o
ano e normalmente é consumido como fruta, algumas famílias cozinham e outras
destilam para fazer aguardente e não é processada como farinha, apenas em casos
de extrema fome. Sabe-se que no mesmo distrito de Novembro a Fevereiro é
considerado tempo de fome.O estudo mostrou que é possível produzir farinha de
banana que pode substituir parcialmente a farinha de milho para fazer xima e ou
papa para cobrir os meses de insegurança alimentar e reduzir a desnutrição em
crianças. No entanto, tem-se notado que a produção de farinha de banana em
Manica não existe, sendo assim, o processamento de farinha de banana é uma
oportunidade de negócio. Mas parece que os empresários locais não sabem que a
banana é matéria-prima que pode ser usada para produzir farinha e outros
produtos que podem ser usados para iniciar um novo negócio na indústria de
transformação".
Como se pode constatar, nem sequer o tal processo de
fabrico da farinha de banana verde é descrito.
Quanto aos requisitos de patenteabilidade
O artigo 32 do CPI prescreve como requisitos da patenteabilidade
a novidade, o envolvimento de uma actividade inventiva e a susceptibilidade da
aplicação industrial da invenção. Esquadrinhando cada um dos requisitos temos:
Novidade
À luz do artigo 33 do CPI “uma invenção é considerada nova
se não houver anterioridade no estado da técnica”. Quer dizer, a
invenção é nova se não tiver sido divulgado nada a respeito do quer em
Moçambique, quer em qualquer parte do mundo, antes da data do depósito do
pedido de registo da patente.
Como já fizemos referência, o motor de busca Google
revela a existência de bastante informação publicada sobre a farinha de banana
verde. A título de exemplo, reproduzimos informação disponível em http://www.tuasaude.com/farinha-de-banana-verde:
Como fazer a
farinha de banana verde
Para fazer a farinha de banana verde em
casa basta seguir a receita:
Ingredientes
6 bananas verdes
Modo de preparo
Cortar as bananas em rodelas médias,
colocar lado a lado em uma forma e levar ao forno em temperatura baixa, para
não queimá-la. Deixar até elas ficarem bem secas, praticamente esfarinhando na
mão. Retirar do forno e deixar esfriar na temperatura ambiente. Depois de
totalmente frias, colocar as rodelas no liquidificador e bater bem até virar
uma farinha. Peneirar até a farinha ficar na espessura desejada e
guarde num recipiente bem seco e tampe.
Esta farinha de banana verde caseira
dura até 20 dias e não contém glúten.
Como usar
A quantidade de farinha de banana verde
que se deve consumir por dia é de até 30 gramas. Você pode adicionar até 2
colheres (de sopa = 20g) num copo de água e tomar em jejum ou adicionar no
iogurte, na fruta, na vitamina de frutas ou no feijão, por exemplo.
Ela não tem um sabor forte e também pode
ser usada para substituir a farinha de trigo no preparo de bolos, muffins,
biscoitos e panquecas.
Resulta líquido do acima exposto que a “invenção” em
causa não é nova pois houve anterioridade no estado da técnica. Como explica
Carla Barros (2007: pág. 195) "uma das características da novidade
exigida é a extraterritorialidade (…). A característica em menção destaca-se
importante em vista de sua amplitude, uma vez que suficiente uma publicação em
periódicos ou sustentação oral em congressos de notícia técnico-científica, em
qualquer país para que se tenha a novidade comprometida, caracterizando-se,
destarte, a anterioridade, cabe falar-se, por conseguinte, em princípio da
novidade absoluta”.
Actividade
Inventida
Nos termos do artigo 35 do CPI, “uma
invenção é considerada como implicando uma actividade inventiva se, para·o
técnico competente na matéria, a invenção não resultar de uma maneira evidente,
do estado da técnica”. Ora, no caso sub Júdice facilmente se
percebe que não apenas para o técnico competente na matéria, como para qualquer
pessoa, a produção de farinha de banana verde é uma questão óbvia, evidente. Ou
seja, não envolve nenhuma actividade inventiva.
Aplicação
Industrial
“Uma
invenção é considerada como susceptível de aplicação industrial se o seu
objecto puder ser fabricado ou utilizado em qualquer género de indústria”. É o
que estabelece o artigo 36 do CPI.
De acordo com Denis
Barbosa (2003: págs. 333-4) este requisito envolve dois elementos importantes. O
primeiro, que "a indústria seja daquelas cujo resultado importe em mudança
dos estados da natureza.
Assim, o teste é de se o problema técnico solucionado presuma tornar objetos
mais pesados ou mais leves, ácidos ou básicos, estáveis ou explosivos". O segundo elemento, que a aplicação industrial signifique “relativo à mudança nos estados da natureza”,
por oposição às simples operações conceituais, aritméticas, artísticas ou, em geral,
abstratas".
Como temos vindo a dizer, a "invenção" ora
em análise não resulta na alteração na solução de um problema técnico, ou seja,
não há alteração do estado da natureza. Pelo contrário, trata-se apenas de um simples
e vulgar método de produção de farinha de banana verde. A consolação é a de que,
para além do fabrico caseiro, a farinha de banana verde pode ser produzida numa
indústria.
Analisada a “invenção” Farinha de Banana Verde sob o
crivo dos requisitos acima apresentados, chega-se a conclusão que ela não é uma
invenção patenteável à luz do CPI, pelo que os examinadores deveriam acionar o
disposto no artigo 72, a), do CPI que prescreve que a falta de um dos requisitos
indicados no artigo 32 constitui fundamento de recusa do pedido de registo de
patente. Por motivos que não são facilmente entendíveis os examinadores fizeram
tábua raza do dispositivo legal acima mencionado.
Ademais, segundo o artigo 39 do CPI, “o
direito à patente pertence ao inventor ou aos seus sucessores, por qualquer
título”. Sucede que no caso da “patente” que temos vindo a analisar não
há indicação de quem seja o inventor, a publicação no boletim é omissa quanto a
esse aspecto. A publicação faz menção do requerente, Finana – Fábrica de
Processamento de Farinha, E.I., mas estranhamente não indica o inventor, o que não
é normal.
Outrossim, uma vez concedida, o titular da patente
tem o direito de uso exclusivo da mesma. A exploração comercial da patente pode
ser feita a título individual ou pela venda ou cessão a instituições com
pujança para o efeito. O titular tem, também, o direito de agir contra
terceiros que usem a sua invenção sem o seu consentimento expresso. Aqui
chegados, importa fazer o seguinte questionamento: com que legitimidade o provável
inventor desta “patente” vai impedir que as pessoas deixem de produzir o que já
é feito há centenas de anos no país e em todo o mundo?
Em conclusão, podemos dizer que estamos perante uma
péssima decisão do IPI e dos seus examinadores, porque "Processo de Produção
de Farinha Na Base de Banana Verde" não é uma patente, de acordo com os critérios
previstos no CPI e acima escalpelizados. Por conseguinte, ela pode ser anulada
a qualquer momento, como estabelece o artigo 25 do CPI, pois o seu objecto é insusceptível de protecção e, na respectiva
concessão, não foram seguidos à risca os procedimentos ou formalidades
imprescindíveis para a concessão do direito, nomeadamente as exigências do
exame substantivo do pedido de registo para apurar se estavam preenchidos os
requisitos de patenteabilidade.