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O noticiário da
RDA-Africa de sexta-feira, 10 de Abril corrente, edição das 12 horas de Maputo,
trazia uma notícia que despertou a minha atenção. A mesma fazia alusão ao facto
de na Espanha uma empresa construtora de automóveis ter desenvolvido um ventilador
a partir de motores de limpa pára-brisas. Os ventiladores seriam colocados à
disposição dos servicos de saúde daquele país para ajudar no combate ao
covid-19. O detalhe precioso estava no fim da noticia. Os fabricantes não iriam
registar a invenção, de modo que sobre ela não recaíssem direitos de
propriedade intelectual e, desse modo, permitir que os países que necessitem
(sobretudo em Africa e América Latina) possam fabricar os seus ventiladores.
Trata-se um extraordinário
gesto de altruísmo. Numa altura em que várias pessoas ou organizações procuram
tirar vantagens nos preços de alimentos, produtos e equipamentos úteis para o
combate à pandemia, estes inventores fazem exactamente o contrário, disponibilizam
a sua invenção a título gratuito.
Motivado por
esta e outras situações, achei por bem revisitar o que a legislação sobre
patentes prevê para os casos em que as invenções podem ser úteis para o combate
a pandemias ou outros perigos que atentam contra a saúde pública.
Legislação nacional
Todo o inventor nacional
encontra o amparo para os seus direitos no artigo 74 do Código da Propriedade
Industrial (doravante CPI). Com efeito, este dispositivo legal estabelece no
seu nº 1 que “Sem prejuízo de outras disposições do presente capítulo, o titular de
uma patente goza dos seguintes direitos exclusivos relativos à invenção: a)
Exploração da invenção patenteada; b) Concessão ou transmissão da patente; c)
Celebração de contratos de licença de exploração da invenção; d) Oposição ao
uso indevido da patente”.
Isto quer dizer
que o inventor tem, não só o direito de usar/ explorar a sua invenção, mas
também de sobre ela celebrar diversos tipos de contrato com potenciais
interessados, bem como tem o direito de impedir que a mesma seja usada por
terceiros sem a sua autorização. De contrario será considerada violação dos
direitos exclusivos da patente, prevista e punida pelo artigo 214 do CPI.
Entretanto, esta
regra admite excepções motivadas por determinadas situações, como é o caso da
eclosão de pandemias, como a que actualmente arrasa o mundo inteiro. O
mecanismo que permite a excepção é chamado de Licença Obrigatória, prevista no
artigo 92 do CPI. Este mecanismo é accionado sempre que haja justificados
motivos de interesse público, nomeadamente quando a invenção é crucial para
questões de saúde pública. Nestes casos o Ministério de Tutela (na
circunstância o da Saúde) autoriza a exploração da invenção, mediante pedido
dirigido ao IPI.
Em situações
extremas como a de emergência nacional na qual nos encontramos agora,
não há lugar para o pedido de licença obrigatória. O Governo, através do Ministério
de tutela, simplesmente autoriza o uso da invenção pelo tempo que for
necessário para conter a pandemia. É
o chamado Princípio da Proporcionalidade que de acordo com BARBOSA, Denis
(2003), a sua aplicação requere que “(…) no equilíbrio entre dois requisitos
constitucionais – a protecção da propriedade e o do interesse social – aplique-se
o princípio da proporcionalidade. Ou seja, só se faça prevalecer o interesse colectivo
até a proporção exacta, e não mais além, necessária para satisfazer tal
interesse. No pertinente, isto significa que a licença compulsória, segundo os
parâmetros constitucionais, não pode exceder a extensão, a duração e a forma
indispensável para suprir o interesse público relevante, ou para reprimir o
abuso da patente ou do poder económico”.
Assim, se, por
exemplo, algum moçambicano inventasse algo que ajudasse no combate ao Covid-19,
e tendo o Governo declarado o estado de emergência, o governo poderia recorrer
à licença obrigatória para limitar os direitos exclusivos do titular da patente
e, desse modo, autorizar a exploração da invenção por terceiros. Ainda assim, é
importante mencionar que os interesses do inventor estão sempre acautelados.
Com efeito, nos termos do nº 6 do artigo 92 do CPI, “o titular da patente recebe uma remuneração adequada, paga pelo
beneficiário, ajustada a cada caso concreto, tendo em conta o valor económico
da patente”. No caso de cura de uma pandemia, a remuneração não será paga
por cada uma das pessoas que foi assistida, mas sim pelo Governo.
Legislação internacional
A protecção dos
direitos de propriedade intelectual tem como seu marco regulatório a Convenção
de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial, de 20 de Março de 1883, da
qual Moçambique é signatário.
A convenção dá
aos membros da União em que se constituem os países que à ela aderiram a
prerrogativa de incluírem na suas legislações nacionais previsões sobre a
licença obrigatória, como forma de “prevenir os abusos que poderiam resultar do
exercício do direito exclusivo conferido pela patente, como, por exemplo, a
falta de exploração”.
Como se pode constatar, a enumeração é exemplificativa, pelo que deve ser feita
uma interpretação extensiva desta norma, para incluir situações de emergência
nacional, saúde publica, entre outros.
Previsão similar
encontra-se igualmente no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC), mais conhecido pela tradução em Inglês
de Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS). Este acordo é
o instrumento internacional mais amplo de tutela da propriedade intelectual e
vincula os Estados membros da Organização Mundial do Comercio. No
seu artigo 31 com a epígrafe “outros usos sem autorização do titular do
direito”, o acordo estabelece que os estados membros podem autorizar o
uso da invenção por terceiros, desde que as respectivas legislações nacionais o
permitam. Prevê, igualmente, que o uso por terceiros deve ser comunicado ao
detentor do direito, mas essa comunicação não é exigível “nos casos de emergência ou outras circunstâncias de extrema urgência
ou em casos de uso público não comercial”.
Como facilmente
se pode constatar, o nosso CPI está “alinhado” com a legislação internacional
no que diz respeito a matéria em aqui análise. Nem poderia ser de outra
maneira, uma vez que Moçambique aderiu e acolheu aqueles instrumentos no seu
ordenamento jurídico nacional.
Sobre a função social da propriedade
intelectual
Os dispositivos
legais analisados acima e que asseguram o uso autorizado de patentes por
terceiros enquadram-se naquilo que a doutrina conhece como o Princípio da
Função Social da Propriedade Intelectual e que consiste no entendimento de que apesar
dos direitos de propriedade intelectual, em geral, e de patentes, em
particular, garantirem aos seus titulares a protecção e o direito exclusivo do
seu uso, esses direitos devem, sempre que necessário, desempenhar uma função
social como forma de ajudar os países a atenderem o desenvolvimento social. Ou
seja, a propriedade intelectual deve estar sujeita aos imperativos do interesse
nacional, repetimos, sempre que necessário. Dito de outra forma, todo o
detentor de direitos de propriedade intelectual tem um poder-dever em relação à
comunidade, ou seja, a sua propriedade deve estar ao serviço da comunidade
sempre que houver justificados motivos para o efeito.
Segundo VARELLA,
Marcelo (1996) citado por CARVALHO, Thiago e THOMÉ, Karim (2015) “a
função social é um limite encontrado pelo legislador para delinear a
propriedade, em obediência ao princípio da supremacia do interesse público
sobre o interesse particular”.
Quer isto dizer
que a função social da propriedade não é uma restrição à propriedade, e sim ao
seu uso indevido. Nas palavras de BARBOSA, Denis (2003) “a função social seria toda
transcendência do interesse egoístico”.
Quer isto dizer que o titular do direito deve abrir mão dos seus interesses
pessoais e aceitar que o mesmo seja posto ao serviço da comunidade.
No caso de Moçambique,
este princípio está de acordo com a própria natureza do Estado definida pela Constituição
da República, que no seu artigo 1 estabelece que “a República de Moçambique é um
Estado independente, soberano, democrático e de justiça social”. Esta
definição tem como consequência o alinhamento de toda a organização e acção do
Estado para atingir tal desiderato.
Nota conclusiva
Sendo Mocambique
um país não desenvolvido e, portanto, sem um avanço tecnológico por aí além, as
pessoas não consideram a hipótese de, a breve trecho, surgir uma invenção de
grande impacto nacional ou mesmo internacional. Aliás, uma leitura atenta do Boletim
da Propriedade Industrial publicado mensalmente pelo IPI reforça essa percepção,
uma vez é notório que as invenções que têm siso registadas pêlos nossos
inventores são aquelas conhecidas como “pequenas patentes”, no sentido de que são
invenções não muito desenvolvidas e que visam, sobretudo, atender aos problemas
básicos enfrentados pelas comunidades.
Ainda assim, não
deve ser descurado o engenho humano que, a qualquer momento, pode levar à invenção
de algo com importância e repercussão nacional, seja para ajudar a combater uma
pandemia, seja para ajudar a resolver o crónico problema da fome/ subnutrição que
ainda afecta uma grande percentagem de moçambicanos, ou ainda para resolver um
eventual “apagão” tecnológico no sistema financeiro nacional, entre várias outras
situações. Nessa altura, haverá que analisar de forma cuidadosa a situação para
aferir de que modo o interesse particular do inventos e a necessidade da
comunidade podem ser conciliados.